sábado, 14 de julho de 2012

Vamos ser julgados de novo?Pergunta-se ex-guerrilheira.


VAMOS SER JULGADOS DE NOVO?  

PERGUNTA-SE EX-GUERRILHEIRA.

Marília Guimarães:
“Eles, os que até hoje escondem o rosto, têm medo da democracia.”

Marília Guimarães: “eles, os que até hoje escondem o rosto, têm medo da democracia” Foto: Ana Helena Tavares
 Por Ana Helena Tavares(*), do “Quem tem medo da democracia?”
Em 1969, houve um Congresso que decidiu juntar as organizações de esquerda VAR- Palmares e VPR. Essa união durou apenas uma semana, mas provocou uma reviravolta na vida da então guerrilheira Marília Carvalho Guimarães, levando-a a participar do sequestro de um avião.
Cerca de 20 dias antes do sequestro, Marília foi de Minas para Porto Alegre, onde fez um treinamento específico. Para se dedicar a isso, teve que escolher alguém de confiança para cuidar de seus dois filhos, Marcello e Eduardo, de dois e três anos. A escolhida foi a jovem Dilma Rousseff.
Através do sequestro, do qual Dilma não participou, Marília levou seus filhos para Cuba. Por haver crianças a bordo, a imprensa internacional deu grande destaque ao caso e a isso a ex-guerrilheira diz dever sua vida.
Para contar esta e outras histórias e falar sobre a Comissão da Verdade, Marília Guimarães, que hoje é empresária do ramo de informática, concedeu em sua casa entrevista exclusiva ao “Quem tem medo da democracia?”.
“Quando houve o racha da VPR e da VAR, eu estava em Belo Horizonte, já na clandestinidade. Não fui avisada, porque estava incomunicável.” Esse desencontro levou os companheiros de Marília a acharem que ela tinha optado pela VAR. Mas não tinha. “Eu continuei achando que estava na VPR e fazendo as coisas que era possível em Belo Horizonte, uma cidade terrível.”
“Minas foi o lugar que mais entregou gente”
“Os choferes de táxi eram quase todos policiais e, mesmo que não fossem, te deduravam. Quando eu ia à rua era a pé. Se não fosse muito cuidadoso, quem ia para Belo Horizonte caía. Muitas vezes, os próprios vizinhos chamavam a polícia. Não sei se é por causa do jeito mineiro de gostar de conversar, de ficar na porta… O que eu sei é que Minas foi o lugar que mais entregou gente.”
O racha VAR-VPR
 “Foi muito complicado, porque não era um racha ideológico. Era um racha de posições: um grupo achava que não devia viajar para Cuba para fazer treinamento militar, queriam fazer aqui; os outros defendiam a ida para lá.”
“Pelo lado da VPR, Lamarca, naquele momento, e o Juarez Guimarães de Brito queriam fazer o treinamento no Brasil. Do outro lado, o pessoal da chamada “ala vermelha”. A VAR-Palmares estava dividida e tinha a ALN, que defendia a ida para Cuba, mas a VPR toda queria ficar aqui e fazer o treinamento nas nossas condições.”
“Cenoura na areia”
 “Por exemplo, em Cuba não existe nenhum animal peçonhento, escorpiões ou cobras, que sejam venenosos. Não é a mesma coisa você treinar num lugar onde o escorpião não é venenoso e no outro onde é, e que você tem que aprender a se salvar. Parece bobo, mas não é. Tem muito fundamento.”
“Outro detalhe forte é o clima. O que você vai plantar para colher mais rápido numa guerrilha na floresta? O que dá em Cuba? Muito pouca coisa. Aqui você pode plantar cenoura na areia que vai nascer.”
“Aprender a atirar, estudar a parte ideológica, aprender a pular muro, a ficar sem dormir, você pode aprender até dentro de um estúdio. Mas a vida na terra é diferente. Nesse aspecto, Lamarca tinha toda razão.”
Vale do Ribeira
“O Vale do Ribeira não deu certo porque foi entregue, senão teria sido um excelente local de treinamento. Era de difícil acesso, tanto que a maioria das pessoas não foram presas lá. Só posteriormente em São Paulo.”
“Só houve guerrilha depois do golpe”
Marília garante que “toda a luta armada de esquerda nasceu depois do golpe. Antes, o caminho era o PCB, que nunca foi a favor da luta armada. As organizações guerrilheiras só começaram a surgir quando o (Carlos) Marighela saiu do PCB (em 1967).”
“Cuba tinha ganhado a revolução e a gente achava que podia fazer a mesma coisa no Brasil. Mas como? Aí que surgiram pequenos grupos, depois as grandes organizações: ALN (Ação Libertadora Nacional), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares) e MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro, data da execução de Ernesto Che Guevara).”
“Em 1969, Lamarca saiu da VPR e foi para o MR-8. Até hoje acho que se ele tivesse ficado na VPR não teria morrido tão estupidamente, numa Caatinga, na Bahia. Isso não entra na minha cabeça, porque ele era um homem muito procurado. Se eu fiquei trancada dois meses em um aparelho, como levar o Lamarca, 3 vezes mais procurado que eu, para uma floresta aberta, de mata rasteira? Em qualquer casa do Alto da Boa Vista, ele estaria mais bem guardado do que na Caatinga.”
Convivência com Dilma: “pouca, mas intensa”
A convivência com Dilma “foi pouca, mas forte e intensa”, conta Marília Guimarães. “Quando eu saí de Belo Horizonte, passei pelo Rio, estive em SP uns dias, na casa do (Sérgio) Mamberti (ator), e de lá fui para Porto Alegre, porque nós íamos atravessar a fronteira para sequestrar um avião no Uruguai.”
“Para isso, era preciso preparar essa ação. Eu tinha dois filhos, Marcelo e Eduardo, um de 2 e o outro de 3 anos. Cheguei a Porto Alegre nos últimos dias de novembro (de 69). Vivíamos uma época barra pesada. Lá, a Dilma ficou quase 20 dias tomando conta do Marcelo e do Eduardo, porque durante o treinamento para o sequestro eu não tinha condição de ficar com eles. Quer dizer, a minha convivência com ela foi curta, pequena, mas ela ficou com meus filhos durante esses dias e depois ela me levou até a fronteira do Brasil com a Argentina. Depois, eu peguei outro caminho para ir para o Uruguai”.
Dilma: “firme, mas muito terna”
“Tive (com Dilma) umas duas ou três reuniões, mas ela era muito terna, sabe? É claro que eu deixei as crianças com ela porque senti que ia dar certo. Tinha que ser uma pessoa de confiança. Eu percebi que aquela menina quase da mesma idade que eu ia cuidar bem dos meus filhos.”
Dilma não tinha filhos ainda, mas era “muito carinhosa”, garante Marília. E ao mesmo tempo “muito firme”. “Todos nós éramos firmes naquela época e hoje ela (Dilma) continua sendo. Bastante. Mas essa fama de durona não é nada disso. Só de você pensar que ela foi capaz de cuidar de duas crianças pequenas, uma coisa que dá um trabalho incrível, levando em conta que ela não era mãe ainda e eles deviam ficar perguntando pela mãe o tempo inteiro… Uma pessoa nessa situação tem que ter paciência e tem que brincar, brincar..”
Recentemente, Marília e Dilma se reencontraram. Marília foi abraçá-la e disse: “O Marcelo está aqui”. A presidente ficou tão emocionada que “as lágrimas corriam”. “Um monte de gente querendo cumprimentar a Dilma e ela começou a perguntar ‘onde está o Marcelo?” No momento em que Marília relatava esta história, Marcelo, hoje barbado, passou pela sala onde ocorria esta entrevista.
A força da mulher
“Eu acredito nas mulheres”, disse enfaticamente Marília Guimarães. “Em todos os sentidos, em todas as épocas, a mulher é muito determinada.”
A ideia de sequestrar um avião
 “A ideia do sequestro era antiga, vinha de quando eu entrei na clandestinidade, em Março de 69. Só que, com a política da VPR de fazer treinamento aqui, a ideia mudou. Eu já não iria mais participar de nenhum sequestro, porque era muito perigoso. Juarez (Guimarães) era contra. Mas a Var-Palmares resolveu fazer o sequestro.”
“Sem saber do racha, fui. Chegando a Porto Alegre, eu não tinha dinheiro, porque o (Claudio) Galeno (na época, marido de Dilma), que iria se encontrar comigo no ponto, não foi. O outro ponto só seria quinze dias depois.”
“Quando cheguei ao hotel, dei de cara com Liszt Vieira. Ele fez de conta que não me reconheceu. Cheguei perto e disse: ‘Pelo amor de Deus, sou a Marília.”
“Ele perguntou: ‘O que você está fazendo aqui?’ Eu disse: ‘Ué, vim para o sequestro.’ Ele disse: ‘Não tem nenhum sequestro planejado’. Digo: ‘Como não? Vocês são loucos?’ E ele: ‘Quer dizer que não te comunicaram do racha? Eu pensei que você tinha optado por ir para a Var-Palmares’.”
“Se você desistir, eu te mato”
“Ou seja, me colocaram na Var-Palmares à revelia, porque se eu tivesse escolha ficaria na VPR. O ideal é o mesmo, mas a gente tem os nossos ídolos. Juarez era uma pessoa linda. Mas James Allen (comandante da operação) tinha sido da “ala vermelha” e era muito radical, afinal guerra é guerra.”
“Ele colocou o revólver na mesa e me disse: ‘Se você desistir, eu te mato’.Para ter uma ideia de como ele era, havia um simpatizante, que não era militante, mas que só porque ouviu sobre o sequestro o James o obrigou a ir no avião.”
Marília explicou que, além da necessidade de tirar seus filhos do Brasil, o sequestro objetivava denunciar a ditadura no exterior. Para isso, foi escrito um manifesto, que, logo que o avião decolou, foi enviado para as agências de noticias internacionais.
Como foi o sequestro
“Sequestrar um avião é uma coisa simples. Se as pessoas estão sentadas, com cinto, e com aquela luzinha dizendo que não pode levantar, ninguém levanta. Nós tínhamos um comandante, que era o James Allen (hoje desaparecido). Então, ele sentou na 1ª cadeira e depois entrou na cabine. Entrando, ele não fez nada, só empunhou o revólver e disse ao comandante: ‘Desvie esse avião para Cuba’.”
“Aquele comandante já tinha sido sequestrado em outra ocasião. Se ele reagisse, poderia derrubar o avião. Então, ficou quieto e disse: ‘tudo bem’. Só depois é que ele disse que o avião não tinha autonomia de voo. Disse que tínha que aterrissar em Porto Alegre. Mas resolvemos ir para Buenos Aires”.
“Tinha um casal bem idoso. Eles ficaram nervosos e começaram a chorar. Então, nós decidimos deixá-los descer em Buenos Aires. Lá, pedimos ao copiloto para entregar o manifesto. Fomos ajudados pelos guerrilheiros tupamaros, muito organizados e queridíssimos.”
Nem a Scotland Yard…
“Os jornalistas imediatamente enviaram (o manifesto) para todas as agências de notícias, frisando que dentro do avião tinha duas crianças. Nesse momento, foi quebrada qualquer possibilidade de o governo, a CIA, o Pentágono, a Scotland Yard, ou lá o que fosse, impedir esse avião de chegar a Cuba.”
“Chegando ao Peru, o avião foi cercado por jornalistas e tinha muita gente com faixas desejando que corresse tudo bem. O governo brasileiro queria negociar para eu descer ali, mas não desci.”
“Como não desci, entraram com tanques dentro do aeroporto. Aí a coisa ficou feia. Os jornalistas foram retirados e o aeroporto foi esvaziado. Então, o comandante Amaral (hoje, Marília sabe o nome dele, porque o reencontrou 30 anos depois) nos avisou que atrás do avião tinha uma porta com uma escadinha e que o Exército iria entrar por lá.”
Manifesto dentro da roupa
“Fomos para a porta, abrimos e mostramos que estávamos armados. O Exército não chegou perto. Eu acho que ele (o Amaral, que era o comandante original daquele avião e estava ali sequestrado) nos deu essa dica porque se apaixonou pela nossa ideia de fazer uma revolução. E acho que as aeromoças também, tanto que elas guardaram o nosso manifesto dentro da roupa”
“Mas esse manifesto, como era mimeografado, acabou se perdendo. Só ficou na nossa cabeça. Dizia basicamente que no Brasil havia uma ditadura muito forte, que muitas pessoas, muitos jovens estavam sendo assassinados. Dizia também que neste sequestro duas crianças estavam sendo levadas para Cuba, porque era insustentável continuar com elas aqui.”
“No manifesto, havia também uma homenagem à Revolução Cubana. Nossa ideia era sair dia 31 de dezembro (de 69) e chegar em Cuba em 1º de Janeiro (aniversário da revolução). Só que a gente chegou no dia quatro.”
“Mate quem quiser”
“Passamos pelo Panamá, onde fomos recebidos pelo Exército brasileiro, pelo próprio Exército panamenho e pela CIA. Foi dada ao Burnier (hoje Brigadeiro) uma arma e disseram: ‘entre e mate quem quiser’. Ele entrou, mas não teve coragem de matar. Do Panamá nós, enfim, chegamos a Havana.”
“Muitos (jornalistas) até tentaram insistir que havia 8 sequestradores e só, sem dizer que havia crianças. Mas, no Peru, onde ficamos 2 dias, um jornalista viu a carinha do Marcelo na janela.”
“O jornalista, para não ser de esquerda, precisa ter um coração de aço”
Mesmo no Brasil, Marília acredita que “tem alguns (jornalistas) de direita”, mas que “de um modo geral, os jornalistas são de esquerda”. E chuta que os esquerdistas seriam “uns 80%”. Para ela, “as pessoas que buscam a notícia não podem ser de direita, é impossível, porque se deparam com muitas realidades duras, ali, na palma da mão.”
“Então, o jornalista, para não ser de esquerda, para não ser sensível, para não ser comprometido em mudar a sociedade, precisa ter um coração de aço”. A direita, que ela define como “direita fascista”, estaria mais representada nos grandes veículos, mas, mesmo nestes, ela disse que conhece “muitos de esquerda, que trabalham para a direita, porque têm que sobreviver”.
“Tudo o que está sufocado explode”
Sobre a atuação da mídia no golpe, Marília lembrou da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. “Era completamente vendido”, disse. Durante a ditadura, porém, Marília assegurou que “havia um grupo de jornalistas comprometidos com o Brasil, que conseguiam burlar a censura.”
“A ditadura ensinou o brasileiro médio a ler cifrado. Aprendeu a ler O Globo e a saber que não está dizendo a verdade.”, disse e citou o extinto Correio da Manhã como “um jornal confiável”, onde havia “ótimos jornalistas”.
Lembrou com saudades do Jornal do Brasil. Lá, nunca conheceu ninguém “que não fosse de esquerda”. Acredita que “no momento político que vivemos, de CPI do Cachoeira e julgamento do ‘Mensalão’ não interessa (aos poderosos) que o JB volte. Mas ele vai renascer, e vai ser ‘bombando’. O bom jornalista está muito sufocado, mas tudo o que está sufocado explode.”, completou.
 Na mesinha da sala, uma foto com Fidel. Marília está nela. Foto: Ana Helena Tavares
10 anos em Cuba
Marília definiu a estadia em Cuba como “muito boa”. “Lá, fiquei 10 anos. Fui alegre e triste. Decidi ficar lá, porque percebi que teria estabilidade para ficar com meus filhos. Já tínhamos vivido como ciganos na clandestinidade (no Brasil) e foi muito duro.”
“Por outro lado, se eu estava tentando fazer uma revolução no meu país, por que iria para Paris? Não tinha lógica na minha cabeça. Eu estava preocupada em ajudar outro país que também precisava. Mas não critico quem foi para Paris. Sou amiga e companheira deles. O exílio é muito complicado, mas o fato de eu ter vivido a revolução cubana foi uma experiência muito boa.”
“Eu também dei o melhor de mim para Cuba. Embora eu fosse muito nova, tinha acabado de terminar Letras NeoLatinas, eu dividi com eles (com os cubanos) a minha experiência com comunidades (no Rio de Janeiro).” Coelho Neto (onde ela tinha, desde 1966, uma escola) e Acari.
“Estadia definitiva”
“Eu não era música, mas tinha escrito algumas peças no Brasil. A ditadura cortou tudo e a gente foi à falência. Depois, em Cuba, eu fui uma das fundadoras do Movimento Nova Trova, algo como a nossa Bossa Nova.”. Marília fundou ainda diversas instituições culturais e educacionais em Cuba e garante que “a estadia lá foi definitiva”. “Para a vida que levo hoje, para todas as minhas escolhas, para eu não ter me perdido como tanta gente se perdeu.”
Nesse momento, Marília contou que naquele mesmo dia da entrevista havia visto alguém dizer na internet algo assim: “Um dia, não quero dizer para os meus filhos que não tive coragem de lutar”. Marília, então, disse a essa pessoa: “Eu, por acaso, tive essa coragem. Lutei e continuo lutando”.
Em Cuba, com Cabo Anselmo
Segundo Marília, ela conheceu “muito” o famoso Cabo Anselmo, quando ele fazia parte do comando da VPR. “Ele frequentava minha casa em Cuba (em 1970), assim como frequentava outras, como a de Marina, viúva de (Carlos) Lamarca.” Marília lembra que ele era “calmo, tranquilo, agradável, terno”. “Chegou a preparar leite para os meus filhos e andava muito com (Mário) Japa (dirigente da VPR). Ninguém podia imaginar que Anselmo fosse agente duplo”.
Em 1972, Inês Etienne viu Cabo Anselmo na Casa da Morte de Petrópolis. “Viu mesmo, de pouca distância.” Logo em seguida, Inês foi levada para ser morta. “Só não morreu, porque se atirou na frente de um ônibus e alguns jornalistas denunciaram que ali havia presos políticos.” Inês foi a única a sair viva de lá para contar história. “Não fosse isso, não teríamos desconfiado do Anselmo. E sou da teoria de que ele não trabalhou sozinho. Mas quem trabalhou com ele?”
Marília dá uma pista: “Essas pessoas têm que ter estado em Cuba… Porque ele saía e voltava, mas havia um mapa definido de pessoas que saíam e morriam na volta para o Brasil. A última vez que ele saiu de lá para não voltar mais foi com o então presidente do Sindicato dos Bancários, (Aluísio) Palhano, que depois seria assassinado na Casa da Morte de Petrópolis, de onde a Inês o viu sair morto.” Até hoje, o corpo de Palhano está desaparecido.
Anselmo: “Convicções que não são dele”
A ex-guerrilheira disse que se impressionou com a recente entrevista que Anselmo deu ao programa “Roda Viva”. “É de um cinismo e de uma certeza tão grandes que fica claro que ele está sendo porta-voz de grupos. Porque ele passa uma segurança de convicções que não são dele. Que ele é um bandido não temos a menor dúvida, mas ele está muito bem treinado para responder a todas as coisas. Ora, ele sabe os inimigos que tem, então se diz que faria tudo de novo, que mataria Soledad de novo, e diz isso com aquela cara limpa, lindo e louro, é porque tem respaldo.”
Livro divulgado por Chávez
Marília voltou de Cuba para o Brasil depois da Anistia e escreveu o livro: “Nesta terra, nesse instante” (Ed. Ebendinger), em que detalha toda a história narrada nesta entrevista. E tem ainda outro livro “Nossos anos em Cuba”. Sobre este, Marília contou que Hugo Chávez fez uma coisa que ela considerou “muito bonita”: durante um encontro de jovens, o presidente venezuelano distribuiu mochilas, onde havia um bloquinho, uma caneta e o livro dela sobre Cuba.
“É difícil a esquerda se entender”
Marília comentou sobre a dificuldade que a esquerda tem de se entender. “O James (Allen) fez (anos depois) uma reunião no Chile. Queria que todos voltassem para a guerrilha no Brasil. Ninguém se entendeu. Ele colocou o revólver na cabeça do (José) Ibrahim. Ibrahim disse: ‘Já conheço essa história… Você fez o mesmo com a “Miriam” (que era o “nome de guerra” de Marília Guimarães) e ela só não aceitou levar bala por causa dos filhos, mas comigo você pode atirar’.” James não atirou.
“Aquela tarja verde-amarela…”
“Na clandestinidade ninguém tinha dinheiro”, assegurou Marília. Então, “assaltavam para comer”. Houve uma ocasião, que não era um assalto, mas que ela quase foi presa. “Eu e o João Lucas Alves (que viria a ser torturado até a morte) fomos comprar um mimeógrafo. Precisávamos para rodar panfletos e tal… E o levamos para a escola. Eu tinha uma escola. Ninguém desconfia de uma escola. Mas, como era férias, tivemos que pegar o mimeógrafo e levar para a casa do Liszt (Vieira), em Niterói.”
“Chegando a Niterói, eu e Wellington tivemos a ideia de fazer um recibo (de falsa venda). Assim, se aparecesse alguém, diríamos que o mimeógrafo estava vendido. Não demorou 20 dias e apareceu.”
“Eles chegaram à escola com uma ordem de prisão, aquela tarja verde-amarela, já para me levar presa. Quando eu disse que tinha vendido o mimeógrafo, os caras não souberam o que fazer. Em cima da mesa, tinha um monte de livretos de guerrilha que nós estávamos montando, mas eles não viram isso. Queriam o mimeógrafo.”
“Nunca vi comunista”
“Mostrei o recibo. O chefe deles leu e viu que havia uma venda. Ele queria levar o recibo, mas eu disse que só tinha um e que me comprometia a ir ao Exército levá-lo depois. Disse: ‘Nunca vi comunista. Não conheço comunista. Não posso ir presa. ’”
“O Juarez achou que eu devia ir até lá convencer os caras de que eu não tinha nada a ver com aquilo. Então, fui. Primeiro para o DOPs, depois me levaram para o Forte de Santa Cruz.”.
“Lá, fiquei horas sem comer, sem poder urinar, e com eles me mostrando fotos de companheiros assassinados, inclusive do Lucas. Eu disse que não o conhecia. Depois de 72 horas, eles decidiram me soltar, mas eu tinha consciência de que estavam me soltando para me pegar de novo.”
“Aí, pensaram em me prender de novo. Mas acho que devo ser protegida dos Orixás… Hoje em dia, parando para pensar, é inacreditável…”
“Ah, se Dr. Médici estivesse aqui…”
Recentemente, durante o governo Lula, Marília participou de um evento onde foi apresentada a 1ª mulher delegada do Brasil, Dra. Ana Maria. Quando Marília foi cumprimentá-la, “a mulher virou uma estátua de sal”.
Marília disse que estava “muito emocionada” de conhecê-la. Já a delegada disse que estava “desesperada”, mostrou uma carteira de desembargadora e exclamou. “Ah, se o Geisel estivesse aqui… Ah, se o Dr. Médici estivesse aqui… Não estou acreditando. Deixa eu te tocar.”, disse tocando em Marília.
A Dra. Ana Maria, segundo a própria, ajudou a redigir o AI-5, trabalhou para todos os ditadores, e Figueiredo, antes de sair, a promoveu à desembargadora. Sem acanhamento, ela disse a Marília que houve muitas reuniões da alta cúpula da ditadura para tentar capturar a então guerrilheira.
Para Marília, essa delegada, hoje casada com um músico e ainda ativa no serviço público, pode ser considerada uma “infiltrada” que representa “perigo”. Marília fugiu dela, mas se arrepende de não ter “tirado mais informações”.
“Abrir o Brasil”
Marília Guimarães considera que, antes mesmo do “compromisso que a sociedade tem de abrir os documentos, abrir o Brasil e contar a história tal como ela é”, o esclarecimento dos crimes da ditadura é importante “pela dor das famílias, que são muitas e vão passando essa dor para os parentes”.
Marília contou que conhece uma senhora, que todos sabem que o filho morreu no Araguaia, mas nunca se viu o corpo. Essa senhora, hoje com mais de 80 anos, ainda espera todo dia o filho chegar e, pelo menos uma vez por semana, ela liga para o PCdoB para saber se há notícias. Para Marília, “quem não tem um filho, irmão, pai ou mãe, nessa condição não é capaz de avaliar”. Então, “é preciso que o país faça um esforço para buscar os seus filhos”.
Por outro lado, Marília vê essa busca como “um dever do governo”. E diz mais: “Se o governo não fizesse, seria um dever nosso (dos guerrilheiros) de criarmos comissões para encontrarmos os nossos companheiros, aqueles que seriam nossos amigos pelo resto de nossas vidas e se perderam”.
“Abrir o livro negro”
Marília vê Dilma interessada na Comissão da Verdade, mas se mostra incrédula com relação à sua eficácia. “Acho que não vai muito longe, porque tem documentos que estão em diversos estados do Brasil”.
Para ela, isso dificulta muito os trabalhos e “nós só conseguiríamos abrir o livro negro se essa documentação estivesse absolutamente toda num mesmo lugar e se as pessoas entregassem os documentos que têm em suas casas e se o Arquivo Nacional tivesse um lugar específico para guardá-los”.
“Como fazer isso, analisando uma história que já tem mais de 40 anos, com uma Comissão da Verdade com um grupo pequeno, com um prazo para acabar, tratando-se de um país com a extensão do Brasil?”, pergunta-se.
Marília exemplifica o problema: “Eu tenho um documento daquela época que não é meu, mas tem o meu nome porque está relacionado a uma terceira pessoa. Mesmo para as comissões estaduais é muito difícil compilar tudo isso. Seria preciso estar tudo muito bem informatizado.”
A Comissão da Verdade deveria analisar 100 anos
Mesmo com todas as dificuldades, Marília acredita que o Brasil precisaria investigar muito além do período de 1946 a 1988, proposto pela Comissão da Verdade. “Sou radicalmente contra que se tenha estabelecido apenas esse período. Deveriam ser 100 anos, pelo menos.”
“O Brasil foi vendido”
Marília revelou que é cobrada por paraguaios em eventos internacionais do porquê de o Brasil não abrir os arquivos da Tríplice Aliança (final do séc. XIX). “Nunca saberemos o que realmente aconteceu?”, pergunta-se. “Porque, para haver o golpe de 64, o Brasil foi vendido. O Brasil teve ditaduras antes, teve outros períodos negros. Nós estamos pensando só na nossa faixa etária”.
Revanchismo é exagero
“Exagero de análise” foi como Marília definiu a tentativa de chamarem essa Comissão da Verdade de “revanchista”. “Infelizmente, o acordo a que se chegou foi de uma anistia ampla, geral e irrestrita e não há como voltar atrás”, lamentou. “Não acho graça nisso, mas não acredito. Os que até hoje dão respaldo a sujeitos como Anselmo não permitirão que aconteça muita coisa.”
“Julgados de novo”
Marília não vê possibilidade de outro golpe, mas, já julgada à revelia pela ditadura, hoje o seu temor é que essa Comissão seja uma forma de “julgar de novo” os guerrilheiros. “E possivelmente seremos condenados pela sociedade”, decretou.
Democracia: “uma utopia no capitalismo”
Marília não tem dúvidas: “não é possível haver democracia no capitalismo”. O que vivemos, no Brasil e no mundo, é uma “ditadura do capital”, E garantiu: “eles, os que até hoje escondem o rosto, têm medo da democracia”. Marília, como se viu, está aí contando sua história.
=> Esta entrevista é a 14ª de uma série sobre Comissão da Verdade. Para conferir as anteriores, clique aqui.
*Ana Helena Tavares é editora do site “Quem tem medo da democracia?”
via Portal Luis Nassif

                                                                                                             

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